segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

PoLiTiCaNdO: Os Nossos Compatriotas Zangados (4) A INDEPENDÊNCIA

Não podemos interromper esta série inicia aqui, aqui e retomada deste lado. Vai o 4º número da série.

Os nossos compatriotas zangados (4) – A independência
Por E. Macamo


Sinto-me um pouco mal por ter de recorrer sempre à fértil e poética imaginação de Fernando Couto para organizar as minhas próprias ideias em relação a um tema tão desagradável como o dos nossos compatriotas zangados. Continuo a rezar para que ele seja condescendente. Imagino os nossos compatriotas todos revoltados contra o abuso da imaginação de outrém para os meus fins obscuros. Escusado será dizer que o pobre poeta não tem nada a ver com o uso que faço da sua criatividade. Já que a minha própria criatividade é limitada, sirvo-me da sua para respirar de novo o país, sentir o seu cheiro e sabor na expressividade do seu verbo. Sim, o uso que faço é profano. Mas seria possível outro uso depois de tanta excelência? Leiam comigo o seguinte poema e interroguem-se se o comentário ainda pode ser ao mesmo nível de sacralidade. O poema chama-se “Asa”. Cá vamos nós: Irreprimível fascínio da asa:/tanto que a demos aos anjos! Que mais ainda se pode dizer aqui?

Gostaria tanto de poder escrever tão vigoroso, conciso e expressivo poema como este, mas sobre o Jornal Notícias. Sim, sobre o jornal Notícias. Algo como: Irreprimível dependência do Notícias:/tanto que só pode ser mentira! Estão a ver? Não dá. Não é o mesmo efeito. Não é a mesma pujança expressiva. Ou sobre o seu director: Irreprimível perserverança do Sitoi:/tanta que só pode ser da Frelimo! Continua a não dar. Tem que ser mesmo a asa; e tem que ser Fernando Couto a dizer isso. Tudo o resto é profano. O fascínio tomou tanto conta da nossa imaginação que colocamos o objecto desse fascínio ao que elevamos bem alto. Não vamos discutir a questão dos anjos, claro, mas estamos avisados. O que de mais sublime povoa a nossa imaginação – pelo menos a do nosso poeta – pode, pela análise fina dos nossos compatriotas zangados, virar algo mais profano ainda do que as minhas lucubrações. Sexo dos anjos. De discutir o sexo dos anjos.

A tradução da ira em vocabulário moral autoritativo que os nossos compatriotas zangados operam faz uso de uma distinção – por eles introduzida – entre independência e jornal Notícias. Isto é, ser jornal Notícias ou publicar no jornal Notícias é razão mais do que suficiente para se estar viciado. Mas como nem todos sabem isso, é preciso sempre dizer “o matutino governamental”. Portanto, é importante que fique a ideia de que o jornal Notícias, por ser jornal Notícias, não pode ser objectivo na sua análise. E se o for, é porque o poder autorizou. Mas a regra geral é essa: se diz bem das coisas, está a mentir; se diz mal, é estranho. Só que a bem dizer, a função da distinção entre independência e jornal Notícias não é de pôr a descoberto as cores partidárias do Notícias. Nada disso. A função é de vincar a independência. Pior ainda: a função é de introduzir critérios de plausibilidade que não deviam ter nenhum papel na discussão pública. É assim: independência, pelo simples facto de se ser jornal independente, é critério de objectividade. No nosso país. E na mente dos nossos compatriotas zangados.

E isto devia nos remeter ao significado da palavra independência. Quando é que uma opinião é independente? No nosso país, uma opinião é independente quando não é possível articulá-la com a vontade do poder instituído. O critério é muito vasto, mas é o critério que temos e praticamos. Ser independente é não ter nada a ver com o governo. Formular uma opinião independente, consequentemente, é distanciar-se do governo. Melhor ainda: é falar mal do governo com insistência doentia. É reconhecer que está tudo mal, prontos. Os independentes podem dizer coisas bizarras, desfiar teorias de conspiração, especular sem sentido e mesmo mentir. Mas como são independentes, estão de certeza a dizer a verdade. Não interessa interpelá-los, pedir-lhes provas e argumentos, encorajá-los  a serem mais comedidos e equilibrados nos seus verdictos. Nada disso. Só não vê quem não quer ver. O estatuto de independência confere razão e plausibilidade. Quem os interpela corre o risco de ser associado ao governo. E isso é grave. Quem publica no Notícias não é independente. Os independentes não têm preferências ideológicas e pessoais, eles ocuparam aquele espaço privilegiado reservado a quem fala a verdade. Aliás, eles são a verdade. La vérité c’est moi! (eu sou a verdade).

Irreprimível gosto da razão:/ tanto que a demos aos independentes! E viva Moçambique! 

2 comentários:

Erva disse...

Gostaria de ter os olhos do Elisio Macamo. Ele tem olhos que pensam e ouvem os pensamentos das pessoas! Eh um feitico que poucos mocambicanos tem...

Júlio Mutisse disse...

Eu admiro este camarada. Nestes textos Faz me lembrar um tipo que eu considero um pai para mim quando ainda escrevia para jornais ou comentava nos blogs antes de assumir "altos cargos".