terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Os Nossos Compatriotas Zangados (1) A Autoridade Moral


A propósito da publicação do texto de Tadeu Phiri no Blog do Mutisse aqui, publico neste cantinho, porque relacionados de alguma forma, uma série de textos que o Professor Elísio Macamo (com a devida vénia) uma vez publicou no Jornal Notícias. Começo com o primeiro da série “A Autoridade Moral” que também foi publicadoaqui.

Os Nossos Compatriotas Zangados (1) A Autoridade Moral

Por E. Macamo


Por mais que te isoles/no seio da floresta/a solidão não será/tua companheira. Quem escreve isto é Fernando Couto, o idoso com maior sentido de humor que conheço neste nosso país, num poema com o título “Floresta” que extraí da sua antologia poética “Rumor de água”. Excelente divagação no cruzamento de várias vivências, sonhos sonhados, esperanças traídas e obstinação telúrica. Não entendo muito de poesia para dizer com autoridade tudo quanto a leitura de boa poesia suscita em mim. Sei, contudo, reconhecer algo profundo que alguém diz independentemente do meio que escolhe para o fazer. Não sei quantas vezes reli estes versos. Não sei também porque os reli. Em certos momentos, tentei perceber a teoria de conhecimento que lhes dá plausibilidade. Noutros momentos, admirei simplesmente a imaginação: estar sozinho e, por isso mesmo, não estar a sós. 

Fernando Couto é capaz de não gostar do que vou fazer nesta série, mas confio no seu sentido de humor para ser condescendente para comigo. Gostaria de me inspirar nesta ideia genial da companhia da solidão para meter conversa com alguns compatriotas nossos. Não sei muito bem como caracterizá-los, pois em certa medida eles representam muito do que é moçambicano na sua maneira de estar. São compatriotas zangados, prontos. Na verdade, cada um de nós tem razões mais do que suficientes para fazer o seu tempinho na nossa história com cara amuada. Há muita coisa que não anda bem. Aliás, como os compatriotas zangados diriam, há muita coisa que está mal. Pobreza. Corrupção. Criminalidade. Mugabe. Arrogância do poder. Ostentação. Falta de sistema (no BIM). Fraude (eleitoral). E muitas outras coisas más que azedam ainda mais a nossa bílis. Portanto, cada um de nós tem motivos mais do que suficientes para se zangar. Ah, eu zango-me mais com a indústria do desenvolvimento. E com qualquer governador de Gaza. 

Mas a nossa zanga, isto é, a zanga dos demais, é coisa geral. É coisa do dia a dia e não tem nada de especial. É aquela zanga tipicamente moçambicana que sempre fecha com a frase “são coisas de Moçambique” ao lado de um encolher característico, e impotente, dos ombros. Que fazer? Há uma outra zanga, mais verdadeira e virulenta. Essa não é de todos nós porque requer um nível de indignação que não está à altura de qualquer pessoa. Ela requer um nível de indignação que só gente que valoriza a sua própria companhia é capaz de alcançar. Aí está de novo a dica que fui buscar em Fernando Couto. Esses nossos compatriotas isolam-se na floresta e pensam que sozinhos estão em boa companhia. A pergunta que coloco e tento responder nesta série que hoje inicio é de perceber como é que eles fazem isso. A inspiração imediata para esta reflexão veio de uma distinção que me foi feita pelo semanário Savanarecentemente onde fui rotulado de sociólogo oficioso do matutino oficioso. Em linguagem mais acessível: coloco a minha autoridade de sociólogo ao serviço de um jornal que coloca a sua autoridade de órgão de informação ao serviço de um governo que coloca a sua autoridade ao serviço de interesses particulares que colocam a sua autoridade ao serviço da destruição de Moçambique. É uma lógica complicada, mas é mais ou menos assim.

Quero perceber como os nossos compatriotas zangados se isolam para entender porque é tão difícil debater racionalmente entre nós. O meu palpite é de que esses nossos compatriotas produzem a sua própria zanga através de um mecanismo inacessível a muitos de nós. Esse mecanismo consiste na tradução do motivo da sua ira num vocabulário moral que os autoriza a ficarem zangados. É algo narciso que tem muito pouco a ver connosco, mas produz muito barulho que atrapalha aqueles que gostariam de pensar este país com integridade intelectual e frieza crítica. E só eles é que podem ficar indignados, mais ninguém. Ou melhor, para alguém mostrar verdadeira indignação pelo que não anda precisa de assimilar o seu vocabulário moral, ver os mesmos demónios, isto é, vê-los mesmo quando não existem, e repetir lugares-comuns. Acima de tudo, repetir lugares-comuns, mas com ar grave e indignado, pois na indignação reside toda a plausibilidade do seu discurso. Nos próximos artigos vou percorrer alguns momentos deste processo de tradução da ira em vocabulário moral a ver se aprendo, Fernando Couto, por favor, a amar os silêncios graves/e também os sussuros/nos graves pinhais.../amar a alma da floresta/a alma da madre floresta...  

2 comentários:

Erva disse...

Recortei todos os textos sobre os nossos compatriotas zangados e trepando o pais pelos ramos que foram publicados no jornal noticias. sao textos muito interessantes. e como sao de elevado valor, acabo de reler este. meus parabens. P.Pinto

Matsinhe disse...

Não há dúvida Erva, são textos de elevado valor. Fizeram me redescobrir que esta questão do debate público de ideias ainda tem que ser bem assimilada por muitos que cresceram e se fizeram homens com a ditadura salazarista e a escamulha que o sucedeu e regozijaram-se por ser vozes únicas nos primeiros anos de independência.

Não podemos esperar muito destes compatriotas zangados porque zangados com a perda do privilégio de guardiões da verdade e do saber que passa a ser questionada por uma cada vez mais crescente legião de intelectuais formados intra e extra muros.