segunda-feira, 27 de julho de 2009

Descanse em Paz Dzovo, Lutaste

Meu caro Gonçalves,

Espero que o que me pedes que faça não se compare a um elogio fúnebre. Não sei escrever elogios fúnebres. Também não sei se é possível escrever um elogio fúnebre para alguém que permanece comigo.

Não se trata de recusar a realidade que é a morte de alguém que me é querido, alguém que me adoptou como seu filho, fruto do meu casamento com sua filha. Não é nada disso.

É, antes, o reconhecimento de que pessoas como ele, sobrevivem a morte, eternizam-se nos corações das pessoas que o conheceram e valorizam as múltiplas virtudes que tinha, em detrimento dos defeitos que tinha. É que ele tinha defeitos de facto. Afinal estamos a falar de um ser humano que age, erra, acerta, canta, chora e dança e não estamos a falar de um Deus.

Se disser Cândido Jeremias Mondlane viverá nos corações de cada amigo, familiar, companheiro, camarada e de todos os que valorizam os seus feitos, se calhar, não estarei a ser original. Isto foi dito quando um certo companheiro seu morreu, já lá vão alguns anos. Mas é a realidade. Ele viverá.

Confesso te Matsinhe, a admiração que passei a nutrir por ele seguiu-se a uma espécie de medo inicial. A primeira vez que entrei em sua casa para o conhecer fiquei intrigado e, de certa forma, apreensivo. Que homem seria esse que, à entrada da sua casa, orgulhosamente escreve: "Bem ou mal, mas lutei"?

Sabia do seu passado militar, sabia dos feitos que lhe são atribuídos. Nesse ano, os jornais, a TVM trouxeram-no à ribalta para falar do Nó daquele general português que pretendia estrangular a FRELIMO em dias, que foi desatado sob suas ordens.

Esperava encontrar um homem com uma postura tipicamente militar. Ríspido. A foto de parede tirada em trajes militares patente na sala de visitas só ajudava a cimentar essa imagem. Enganei-me.

O homem que conheci era bem diferente dessa imagem: simples, afável, ponderado e de uma lucidez intelectual de fazer inveja. Falava pausado como que a medir cada palavra que dizia, como que a querer certificar-se de que era compreendido. E tinha ideias claras.

Ficamos amigos. Era meu pai também. Dizia que sogro é algo distante. Falávamos muito. Tinha orgulho do seu passado. Podia ter ficado à sombra do regulado do seu pai que era respeitado e temido em Gaza, mas preferiu juntar-se ao movimento que seu tio fundara e, tal como esse, lutar por Moçambique.

E lutou.

Se calhar hoje perceba a dimensão de "Bem ou mal, mas lutei."

Nos últimos dias vinha lutando contra um cancro. Há de ser a única batalha que o derrubou. E derrubou-o do facto. A 19 de Julho, o médico anunciou que Cândido Jeremias Mondlane já não pertencia ao mundo dos vivos. O maldito cancro derrubara o Major General (na reserva) Cândido Jeremias Mondlane.

O maldito cancro tirou do convívio dos vivos, um pai, irmão, tio; um sonhador, patriota convicto, camarada leal que mesmo passando pela maior provação nunca se virou contra a FRELIMO. Aliás, ele não era daFRELIMO, ele era a FRELIMO. Repetia isso. Da FRELIMO éramos nós, miúdos que, com calo, fruto da experiência, poderíamos ser (um dia) a FRELIMO, dizia-me.

O maldito cancro tirou do convívio dos vivos, um herói. Sim, um herói. O seu papel na luta pela libertação de Moçambique que, de certeza, não se resumirá ao capitaneamento do desmantelamento do Nó Górdio de Kaulza de Arriaga, atribuem lhe esse estatuto. Mas a história e os homens sufragarão o seu papel e nem é ou será necessário Decreto Presidencial para que esse estatuto lhe seja concedido. Ele é um herói desta pátria, é herói para os seus e os seus serão todos os moçambicanos de bem, que reconhecem e valorizam o esforço dos jovens da sua geração que abdicaram dos txilings próprios da juventude e se entregaram a causa de lutar por Moçambique, libertar a pátria.

Há de ser pelo seu papel no passado e o que ele representa para a nação que lhe foram dadas honras de Estado, do velório ao funeral, onde familiares, amigos, antigos companheiros de armas, militares da nova geração, governantes, membros de partidos políticos confluíram ao salão nobre do Conselho Municipal de Maputo e para Nhacutse onde foi sepultado, a seu pedido, para o último adeus.

Um adeus doloroso a um grande homem. É a sina da vida. Ficam as boas coisas que plantou em cada um a quem ele marcou, incluindo eu, seu filho por afinidade.

Descanse Dzovo, lutaste.

Júlio Mutisse