Este é um texto do Prof. Elísio Macamo publicado no notícias de hoje. É interessante.
Outra vez o Zimbabwe e Mugabe!
A QUESTÃO zimbabweana é simplesmente chata. A prova disso é a tendência de polarização que ela provoca entre nós. O Primeiro-Ministro britânico, Gordon Brown, anunciou que não iria participar na Cimeira UE-UA se Robert Mugabe, que está proibido de pôr os pés na Europa, for convidado a participar. Ao invés de se aceitar essa decisão soberana do líder político britânico e deixar as coisas por aí, isto é, ignorando a chantagem grosseira que ele faz a Portugal – anfitrião da cimeira – e aos chefes de Estado africanos, despoletou-se uma controvérsia que ameaça inviabilizar o encontro. Uns dizem que Robert Mugabe não deve ser convidado e outros dizem que deve, sim senhor. O nosso Governo já disse publicamente que se Mugabe não for convidado, não vai participar. Acho esta decisão sensata. É sobre as suas implicações, contudo, que gostaria de reflectir.
O problema do Zimbabwe não é apenas chato; é bicudo. Há muitos anos que o país está à deriva com uma boa dose de responsabilidade para Robert Mugabe e seus camaradas da ZANU-FP. Na verdade, após um início auspicioso da reforma latifundiária que viu, por exemplo, o Zimbabwe a transferir mais terra para os africanos negros nos primeiros dez anos de independência do que é o caso na África do Sul ou na Namíbia – e sem violência – a partir de um certo momento Mugabe perdeu o controlo da situação e fez recurso à violência e ao desrespeito total da ordem democrática para enfrentar os problemas que foram surgindo. A reacção da comunidade internacional, sobretudo da Grã-Bretanha, ao invés de pautar pelo comedimento necessário para evitar o pior, fez tudo para que Mugabe se radicalizasse e tivesse espaço suficiente para argumentar com muito sucesso no seio de muitas mentes africanas que o Zimbabwe trava uma batalha decisiva contra a recolonização de África. O hábito europeu de procurar demónios para explicar os problemas africanos simplesmente piorou a situação. As sanções aplicadas insensatamente ao Zimbabwe têm contribuído decisivamente para dar conforto a Mugabe na sua crença messiânica, reforçar a suspeita de cinismo e duplicidade na atitude europeia em relação aos negros e piorar as condições de vida daqueles a quem se pretende ajudar.
A natureza bicuda do problema emperra o nosso próprio debate. Em Moçambique existem basicamente duas posições em relação ao Zimbabwe, ambas legítimas, mas dificilmente adequadas para a formulação de uma política diplomática coerente. A primeira é dos que acham que o problema do Zimbabwe é Mugabe. Estes não reconhecem que mesmo quem não ache que o problema do Zimbabwe seja Mugabe pode estar, mesmo assim, interessado na solução do problema. Esta posição anti-Mugabe alimenta-se da ideia de que há um conluio de chefes de Estado africanos com credenciais democráticas duvidosas que pauta pela inacção como forma de não trair amizades históricas que já não são relevantes para o presente. Abro um parêntesis para deixar registada a minha opinião pessoal de que não percebo porque honrar o grande apoio que Mugabe deu a Moçambique durante a guerra da Renamo constitui um problema. Só quem se se esqueceu ou não viveu a experiência de ir à escola com o ouvido nas sirenes para procurar abrigo antiaéreo contra os “mirages” rodesianos é que pode abanar a cabeça perante esta dívida de gratidão. Para estes, a solução do problema zimbabweano passa pela diabolização de Mugabe e pela recusa dos africanos de continuarem a apoiá-lo. É esta posição que não percebe porque o Governo moçambicano se recusa a ceder à chantagem britânica.
A segunda posição é dos que acham que o problema zimbabweano é o legado colonial consubstanciado nas vantagens estruturais que os zimbabweanos brancos gozam. Os defensores desta posição adoptam o discurso racista de Mugabe para acusar os seus adversários de estarem a ser porta-vozes do neocolonialismo europeu. Esta posição procura a sua coerência nos diferentes pesos que os europeus utilizam para abordar problemas idênticos. Assim, faz-se um recuo histórico e pergunta-se porque os europeus e americanos resistiram tanto às sanções contra o regime do apartheid e hoje, sem pestanejarem, aplicam-nas ao Zimbabwe governado por negros. Para estes a solução do problema passa pelo fim da interferência europeia e pela solução do problema da distribuição injusta da riqueza naquele país. O problema aqui, contudo, é de se esquecer que a desigualidade a favor dos brancos é apenas um aspecto das desigualidades naquele país. Mesmo no seio da população negra há uma distribuição desigual da renda que levanta, inclusivamente, o espectro de maiores problemas para o Zimbabwe mesmo após o fim das vantagens para os brancos.
POSIÇÕES QUE NÃO AJUDAM
Eu acho que a procura de uma solução para o problema zimbabweano não passa necessariamente pela aceitação de uma das duas posições. Ambas são ideológicas e não melhoram a sua plausibilidade agregando factos. Por exemplo, um dos cânticos da primeira posição consiste em repetir religiosamente a crença segundo a qual os farmeiros brancos seriam agricultores exímios e teriam sido o garante da segurança alimentar e da robustez da agricultura daquele país. A realidade é bem diferente, começando pelo facto histórico de que este é o argumento que foi usado pelo Governo minoritário para roubar a terra dos africanos. Na verdade, é um dado histórico assente que quando a terra foi dada a farmeiros brancos na sequência da perfídia de Cecil Rhodes nos finais do século XIX, os agricultores negros estavam a registar sucessos no abastecimento do mercado. Eles perderam a terra para serem transformados em mão-de-obra nas fazendas dos brancos e nas indústrias nos centros urbanos.
A despossessão é que quebrou a produtividade da agricultura africana. Não nos esqueçamos que mesmo em Moçambique temos uma história quase idêntica. Os grandes êxitos de exportação agrícola no tempo colonial não dependiam apenas das grandes companhias. Dependiam da produção campesina que era comprada em regime monopolista pelas companhias. Em relação à agricultura zimbabweana branca acresce-se o facto de que o seu sucesso estava limitado ao tabaco – lembram-se dos discursos de Samora Machel contra o “tabagista” Ian Smith? – e ao milho, único comestível que abastecia abundantemente o mercado interno e ainda sobrava para a exportação.
No fundo, contudo, não é a eficiência “branca” que está por detrás do sucesso da agricultura zimbabweana, mas a estrutura de incentivos e apoio à actividade agrícola. Joseph Hanlon, o académico britânico, mostrou numa análise interessante dos farmeiros brancos em Manica que, afinal, é esta estrutura de incentivos e apoio que explica a sua “eficiência” e não, como o cântico sugere, uma espécie de superioridade natural branca no trabalho produtivo. A falta destes incentivos para os farmeiros brancos em Manica está a comprometer o seu trabalho. Alguém ainda se lembra da Mosagrius? Temos paisagens florescentes em Niassa em resultado da presença dos “produtivos” farmeiros brancos sul-africanos? Quantos ainda estão lá na ausência desta estrutura de incentivos e apoio à agricultura? Agora, é um facto que a política de Mugabe contribuiu grandemente para o desmoronamento desta estrutura. Contudo, justamente porque a nossa atenção está presa ao demónio do Mugabe não temos tempo para ter em consideração toda a conjuntura zimbabweana.
Na verdade, Mugabe foi até certo ponto vítima do seu próprio sucesso. A política que ele seguiu logo após a introdução do sufrágio universal no Zimbabwe de retificar os desequilíbrios coloniais distribuíndo terras aos zimbabweanos negros colocou enormes pressões sobre esta estrutura de incentivos e apoio. Por razões que nós os moçambicanos devíamos sobejamente conhecer, o Zimbabwe teve enormes dificuldades em responder adequadamente às exigências que surgiram com a correcção dos desequilíbrios. O excelente livro de Ruth First e colaboradores no Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane com o título “O Mineiro Moçambicano” dá conta de problemas idênticos na execução da política agrária da Frelimo. A política do Governo criou novos grupos de interesses, novas situações socioeconómicas e pôs, como é evidente, posições adquiridas em risco. A redução de mão-de-obra moçambicana na África do Sul criou um exército de desempregados – uma situação pouco estudada entre nós – que passou a ser um factor decisivo não assumido do sucesso ou falhanço da política de socialização do campo, adoptada pela Frelimo. O Zimbabwe passou por uma situação semelhante com a agravante de que o governo nunca conseguiu ter clareza sobre os objectivos gerais da sua intervenção. Na verdade, o que é interessante na situação actual do Zimbabwe não é o facto de Mugabe ter “destruído” as boas coisas que os brancos deixaram; o que é interessante é ele ter conseguido manter por tanto tempo!
Este último ponto vai para os que vêem o problema apenas na óptica da injustiça colonial. Com efeito, a apresentação do problema latifundiário no Zimbabwe como sendo um problema de desequilíbrio favorável aos brancos na distribuição da terra corresponde à ideia errada que Mugabe passou a ter do problema quando a sua política falhou e o Governo de Tony Blair não teve a sensatez diplomática de analisar com cuidado antes de o hostilizar. Já durante o Governo minoritário de Ian Smith tinha sido iniciada uma política de distribuição de direito de uso e aproveitamento da terra aos negros – ainda que longe dos rios – mas em fazendas com proprietários brancos. Mugabe continuou com esta política, mas a sua aplicação foi sempre problemática. Existem vários estudos que dão conta de como estes programas de distribuição de terras foram criando, eles próprios, uma larga classe de sem-terras em resultado da própria ineficiência dos programas. E mesmo aqueles que receberam terras, cedo se aperceberam de que a terra, sem incentivos e apoio, não valia nada. Os mais de 3500 trabalhadores agrícolas negros não estavam tão interessados na terra quanto na segurança dos seus empregos. Entretanto, o imaginário político zimbabweano estava tão preso à ideia de que a Chimurenga tinha como objectivo devolver a terra aos negros que nenhum actor político zimbabweano, começando pelo próprio Mugabe, foi capaz de manter frieza suficiente para ver a verdadeira natureza do problema que tinha em mãos. Optou pelo mais fácil que era responsabilizar os brancos pelas dificuldades. A procura de bodes expiatórios tem uma história muito longa na política.
NEM MUGABE, NEM OS BRANCOS SÃO O PROBLEMA
Portanto, o problema zimbabweano é demasiado complexo para ser reduzido às fórmulas que alguns de nós repetimos irreflectidamente. Mugabe não é o problema do Zimbabwe da mesma forma que os farmeiros brancos também não são. Mas também nenhum deles é a solução. A solução – agora estou a escrever como sociólogo – é algo para o qual um grande académico ugandês, Mahamood Mamdani, havia chamado atenção em tempos num livro com o título “Cidadão e Súbdito”. Mamdani criticava nesse livro a crença bastante espalhada de que a África do Sul, a Namíbia e o Zimbabwe constituíam excepções à regra colonial em África. Ele dizia, com efeito, que na verdade os três países representavam o cúmulo do sistema colonial. Esses três países eram a realização do que o regime colonial teria sido em todos os outros países africanos se a história tivesse seguido o rumo correspondente à lógica estrutural do colonialismo.
Considero esta ideia de Mamdani central à qualquer procura de solução para o problema zimbabweano. Na verdade, o problema zimbabweano é mesmo o problema do legado colonial e do que é necessário fazer para corrigir os seus defeitos.
O Zimbabwe apresenta-nos a história trágica da tentativa de correcção de injustiças estruturais num contexto político marcado, por um lado, pela existência de discursos que ajudam os actores políticos a apreenderem o mundo e, por outro lado, pela natural dificuldade de formar e manter o Estado como instrumento de intervenção na sociedade. O discurso racial, de ambos os lados, tem contribuído bastante para desviar a atenção do que é verdadeiramente essencial na situação zimbabweana. Ao mesmo tempo, porém, a fragilidade das estruturas estatais – fragilidade que nós conhecemos muito bem em Moçambique – não nos permite abordar os problemas estruturais a nível em que os devíamos abordar e, para piorar as coisas, quando falhamos olvidamos isso e passamos para a retórica. Pessoalmente, não nutro muita simpatia pela diabolização de Mugabe, embora ele não represente exactamente a ideia de herói que eu tenho. O problema da sua diabolização reside no facto de que esquecemos que qualquer desculpa serve para evitar abordar problemas. E quando as desculpas têm espaço de afirmação na sociedade, não é necessário nenhum demónio para que haja violência. Mais uma vez, a nossa história constitui um espelho.
A reflexão já vai longa. O nosso Governo faz bem em dizer não aos britânicos. E enquanto não tiver uma ideia clara de como ajudar os zimbabweanos pode ganhar tempo com iniciativas para, literalmente, o inglês ver buscando inspiração, por exemplo, no “engajamento construtivo” americano dos anos oitenta. Não obstante, é imperioso elaborar uma política coerente de abordagem do problema zimbabweano. Precisamos de cenários e de ideias osbre como reagir a esses cenários. Por exemplo, mesmo agora coloca-se a pergunta de saber que política está por detrás da situação actual, sobretudo nas províncias fronteiriças com grandes afluxos de zimbabweanos e a dominação do comércio informal por eles. Precisamos de saber como vamos reagir a uma guerra civil naquele país. Precisamos de saber como vamos tirar partido da melhoria da situação no Zimbabwe. Enfim, precisamos de uma política coerente. Temos muito interesse em fazer isso, pois mesmo sem considerar os problemas criados pelos refugiados – brancos e pretos – no nosso seio, o problema zimbabweano é um problema que diz respeito a qualquer sociedade pós-colonial. A história está a utilizar os pobres dos zimbabweanos como palco provavelmente da batalha final contra o colonialismo. E aqui não estou a falar como os que vêem o assunto zimbabweano como uma questão de defesa da África contra o neocolonialismo. Estou a falar como alguém que está preocupado com os desafios que nos são colocados pelo legado histórico nos nossos esforços de emancipação económica e social.
O ex-presidente Chissano é citado como tendo dito que a cimeira é uma oportunidade para o diálogo. Ele tem razão. O problema, contudo, é saber qual será a agenda desse diálogo. É evidente que, por enquanto, não há nada que os europeus possam conversar com Mugabe. Contudo, há muito que nós os africanos podemos conversar com ele. E temos que conversar com ele para o nosso próprio bem, para o seu próprio bem e, acima de tudo, para o bem da maioria do povo zimbabweano feito peão da arrogância europeia e insensatez de Robert Mugabe.
Penso que o nosso Governo, beneficiando da relação especial que tem com a ZANU-FP e com Mugabe, em particular, poderia empreender uma iniciativa diplomática com Joaquim Chissano no centro. Essa iniciativa poderia consistir em criar uma plataforma de discussão regional com Mugabe sobre os problemas que a sua intransigência está a criar à região, mas também sobre a necessidade de encontrar uma saída airosa ao impasse interno que se verifica em relação à transformação estrutural do país. A África do Sul e a Namíbia têm interesse directo nisso, pois eles são os próximos. Nós também seremos se continuarmos apenas a “beneficiar” da entrada de gente que tem dificuldade em perceber que os ventos de mudança vieram mesmo para ficar. Isso é coisa também de académicos que devem começar a alimentar a discussão deste assunto com matéria mais substancial do que a repetição de slógans. Por que não criar um grupo bem específico de trabalho formado por académicos e diplomatas para analisar minuciosamente o problema e dar suporte intelectual à intervenção diplomática? Conforme já disse, o problema transcende o Zimbabwe. Nós também estamos directamente implicados. Mugabe vai ser afastado do poder, mas o problema que o envolveu não vai desaparecer e é até capaz de nos vir assombrar.
Não resisto a contar um episódio pessoal. Um amigo zimbabweano médico e que participou na segunda Chimurenga fez-me uma pergunta retórica no início dos anos noventa que volta e meia aparece na minha mente quando penso no problema do Zimbabwe. Ele perguntou-me se eu já me tinha dado ao trabalho de verificar quem estava no poder na Grã-Bretanha quando os grandes momentos da libertação do continente se deram. E respondeu que sempre foi o partido conservador. Penso nesta pergunta como uma explicação parcial da atitude da ZANU-FP em relação aos britânicos. O partido trabalhista de que são membros Tony Blair e Gordon Brown nunca foi boa notícia para o Zimbabwe. Pelo menos na percepção da ZANU-FP.
E. Macamo
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