Não escreveria esta carta não fosse por ter nutrido durante algum tempo, alguma simpatia pelo exercício de cidadania que o Dr. Philipe Gagnaux vinha exercendo como concidadão. Não vi de outra forma o seu envolvimento de liderença no movimento “Juntos pela Cidade” senão como o exercício de cidadania na nossa democracia em crescimento, com as suas naturais vicissitudes.
Todavia ao assistir o último programa do domingo sobre a resenha da semana na estação televisiva da Soico, onde a sua intervenção se resumiu numa apologia ao colonialismo e à negação do valor da luta armada de libertação nacional como condição determinante do processo de descolonização em Moçambique. Esta intervenção foi prontamente apoiada por um dos seus parceiros no debate, neste caso o Deputado da Renamo António Mulhanga que, não ocasião, louvou entusiasticamente o “grande amor dos portugueses” pelo povo moçambicano, factor que, segundo este estranho personagem sintonizado com Gagnaux, esteve na origem da nossa independência. E não a luta armada, visto que esta foi protagonizada por aventureiros e oportunistas que queriam simplesmente chamar à atenção no caso de a bondade e o amor dos colonialistas se decidisse manifestar. Esta estanha posição, de parte do Dr. Philipe Gagnaux, remeteu-me a um profundo desapontamento e revolta visceral como neto de escravos e de avós trabalhadores em regime de chibalo. E, conhecendo seus antecedentes genealógicos progressistas e pensamento, hoje levanto duas questões centrais:
Há quanto tempo Ganhaux nos engana sobre a sua defesa da moçambicanidade e construção da Nação Moçambicana? Ou será que as suas afirmações, simplesmente retratam uma psicose política de negação a tudo, não importando os factos ou sua distorção, bastando que seja algo inerente ou relacionado com a Frelimo?
Vou tentar desconstruir a aberração histórica e humilhante com que Ganhaux afronta ao nosso Nós, identidade moçambicana, independentemente da cor, raça, religião ou etnia, edificada com sangue e não com a “oferta generosa e amorosa”, resultante de uma descolonização durante a qual os portugueses, presumivelmente, teriam acabado por nos dar a Independência de bandeja e por vontade própria, segundo o nosso bom Doutor.
O pensamento de Ganhaux revolta porque ao mesmo tempo que “indirectamente” usa os pressupostos de Salazar na sua relação com as Colónias, legitima os argumentos dos finais da década 50 substanciadas em Humberto Delegado e reforçadas pela elite colonial portuguesa na década 70, para negar a independência de Moçambique. Por conseguinte: Não foram os moçambicanos que registaram na sua história que, quando Portugal se tornou membro da ONU em 1955 recebeu ordens para conceder a independência das colónias mas que contra essa ordem declara que todos os habitantes das suas colónias eram cidadãos portugueses e passa a designa-los por províncias ultramarinas, mantendo-se irredutível, lançando com seu estado novo a aceleração da desgraça e massacres sobre os moçambicanos.
Dr. Gagnaux, foi a elite portuguesa que negou a descolonização pacificamente solicitada, alegando que o Preto não estava preparado para se governar e que de forma intemporal era preciso dar-lhes tempo e ensinar-lhes a se governarem.
Façamos uma viagem pelo tempo Doutor. Onde é que o Sr, e milhares de nossos pais deveriam ter ficado sentados à espera da gratidão e e do amor dos colonos, alegado por si e por António Mulhanga, que eventualmente levaria os colonialistas a dizerem: agora sim esses pretos já estão maduros, merecem ser independentes?! Será que acredita no que diz, ou porque na psicose da negação da Frelimo isso é de bom-tom? Parou para pensar que colonialismo não é só antónimo de Frelimo? Mas sim é sinónimo de humilhação, despotismo, racismo, atraso premeditado e propositado dos negros, dominação, massacres, e atraso do habitante da colónia? Ou as vicissitudes inerentes à construção democrática e a sua negação normal, legitima como cidadão contra a ideologia vigente e processos de governação, são razão suficiente para dizer que não devíamos ter ficado independentes?
Por último: Não estive na luta armada. Mas em conversas privadas sobre estórias de vida de alguns combatentes, muitos deles anónimos, no final é sempre de limpar lágrimas teimosas. Não estou sequer a falar do valor histórico, mas dos indivíduos, que não tiveram juventude, não crescerem como homens e mulheres normais. Desvalorizar a luta armada como condição da descolonização, ignorar que a luta armada, no Conjunto das colónias foi o oxigénio que insuflou as condições sociais e políticas para o surgimento do 25 de Abril, Dr. Isso é duplamente uma miopia.
Este 25 de Abril que não surgiu devido ao “amor dos colonialistas” como o Dr. Gagnaux e Mulhanga alegam, mas sim da derrota dos portugueses no teatro das operações em Moçambique, na Guiné e em Angola. Os oficiais portugueses que promoveram a Revolução dos cravos estavam cansados de ver seus camaradas morrerem e ficarem estropiados por causa duma guerra que, no fim, consideraram injusta. O Movimento das Forças Armadas nasceu do calor cada vez mais incandescente da luta dos nossos povos caro Dr. Da luta dos Africanos que a ideologia racista do colonialista insistia em não reconhecer nenhuma capacidade. Suas declarações, Dr. Gagnaux, nos lembram esses tempos de aviltamento que a luta de libertação nacional ajudou a redimir. É facto histórico que, mesmo o “amoroso” regime saído do 25 de Abril procurou, na fase inicial das negociações com a FRELIMO, utilizar uma dupla técnica segundo a qual, publicamente, afirmava condenar e rejeitar a hedionda herança colonial, quando no segredo da mesa das conversações se esforçava por encontrar novas fórmulas destinadas a perpetuar o colonialismo. Pública e solenemente a delegação portuguesa reconhecia a natureza criminosa do colonialismo, aceitava a responsabilidade pelos crimes e massacres colonialistas e até homenageou a memória de Eduardo Mondlane. Na mesa das conversações, porém, a delegação portuguesa vinha propor precisamente, os mesmos esquemas que Marcelo Caetano havia já proposto.
A obstinação portuguesa forçou o conflito a prolongar-se, provocou novas derrotas ao exército colonial, acelerou o processo do colapso – sim, Doutor, COLAPSO - do exército agressor. As derrotas sofridas pelo colonialismo destruíram as manobras políticas que os “amorosos” governantes pós 25 de Abril fomentavam para obstruir a independência de Moçambique.
E mais. Podemos até problematizar as zonas libertadas como o faz. Mas negar as zonas libertadas como espaço de utopia social e política, de construção de uma nova sociedade com base num novo começo, é negar sem apresentar argumentos que a Frente de Libertação de Moçambique era muito mais que um Movimento Rebelde, similar aos criados no tempo do Apartheid, que começaram por destruir tudo e todos e no final procuraram construir uma pseúdo ideologia. Dr, é isso que está a comparar?
Dr. Discutir e reivindicar espaço legitimo de minorias, explicitamente ou implicitamente, como o Doutor e muitos outros o fazem, não passa por desvalorizar outros grupos, e muito menos humilhar os combatentes que deram o seu generoso sangue para a materialização da derrocada do colonialismo. Deveriam ter se mantido pacientemente no lugar de serviçais? Manter-se analfabetos? Confirmar o ensino ‘amoroso” dos colonialistas de que eles eram incapazes? Está, em conluio com o seu aliado de circunstância António Mulhanga, a insinuar que a grande maioria dos moçambicanos nunca deveria ter saído de onde os colonos os obrigaram a estar? Para ficar quem no lugares deles? Alguma nostalgia?
E desenganem-se os que pensam que as bizarrias do Dr. Gagnaux são apenas uma chapada à FRELIMO. As palavras de Gagnaux são uma agressão e uma negação à moçambicanidade.
O meu abraço e solidariedade aos combatentes de libertação nacional. Mais do que manda-los de volta às suas aldeias, devíamos honrá-los muito mais.